22 de agosto de 2014

O simulacro


"O homem está ligado indissoluvelmente ao seu destino e á carga de sua própria vida, quando procura libertar-se desse peso, regressa novamente a ele com uma pressão maior e ainda mais terrível". 


O médico e o monstro, Robert L. Stevenson.


Hoje não haverá janta. Através do silêncio do quarto ouve o som de alforria da mãe na cozinha, que lava a louça antes das 19h, deixando a mensagem silenciosa "se vira"  ecoando pelos azulejos. Provavelmente mais tarde a fome aperte e ela se arrependa como sempre, e acabe comprando (gastando) alguma coisa para "eles" comerem. Eles não inclue "ele", e ele sabe disso afinal "já é homem feito", "tem dinheiro pra se virar", verdade e verdade. Viver com os pais depois dos 30 o obriga constantemente a encarar as verdades que finge ignorar a fim de permanecer como vítima para si mesmo, e ter alguma razão para reclamar consigo e em seguida se consolar. Sozinho. Acende um cigarro, todos os seus amigos estão parando, menos ele, talvez a dificuldade que encontra em manter objetivos positivos, como academia, dieta, gastar menos, não se compara a facilidade de se manter firme em seus objetivos altamente nocivos. Fuma com prazer, para valer também o dinheiro que gastou com o maço. Decide que não vai jantar, nunca mais. Vai emagrecer, o chá verde coado na pia desde as 14h (provavelmente já sem nenhum antioxidante) vai resolver. Todos os telefones de delivery da cidade passam automaticamente em sua mente. Sente fome. Pensa no ex, o ex passou como um dos telefones do delivery mas foi notado. Que bom, quer dizer que o dito cujo já está sendo quase digerido por seu hipotálamo. Sabe que em breve não haverá mais nenhuma referência ou nome para o ex se meter e passar ousadamente por trás de seus olhos. Breve não será mais nada, seu nome nem aparecerá mais como primeira opção de pesquisa nas redes sociais, igual aos outros. Que outros? Sorri. Sente fome novamente. Se detesta por um micro segundo por estar acima do peso e não poder desfrutar sem culpa do único prazer que lhe resta e pelo qual pode pagar. Acende outro cigarro. Conversa com alguns amigos distantes apenas fisicamente, alguns deles com o peso do "não era pra ser só amizade", ao menos pra ele. Mas a distância tem a alquimia de transformar o futuro ex amor num colega de trabalho, desses de bom dia e bom final de semana, sem que nenhum dos dois tenham queixas a respeito disso. Na televisão o policial encontra uma simulação de armamento, o "simulacro".


27 de fevereiro de 2014

William Foster




Chora de manso e no íntimo... procura 
Tentar curtir sem queixa o mal que te crucia: 
O mundo é sem piedade e até riria 
Da tua inconsolável amargura. 

Só a dor enobrece e é grande e é pura. 
Aprende a amá-la que a amarás um dia. 
Então ela será tua alegria, 
E será ela só tua ventura... 

A vida é vã como a sombra que passa 
Sofre sereno e de alma sombranceira 
Sem um grito sequer tua desgraça. 

Encerra em ti tua tristeza inteira 
E pede humildemente a Deus que a faça 
Tua doce e constante companheira...

Renúncia, Manuel Bandeira.






12 de fevereiro de 2014

Sheherazade e a navalha de Occam.

A única Sheherazade que jamais irá nos decepcionar!


“Sheherazade calou-se. “Continue!”, Shariar ordenou. 
“Mas o dia está amanhecendo, Majestade! Já ouço o carrasco afiar a espada!“. 
“Ele que espere”, declarou o rei. Shariar deitou-se e dormiu profundamente.”

Trecho de “As Mil e Uma Noites”.



Esta semana todos nós frequentadores (fanáticos e viciados como somos) das redes sociais, estamos assistindo nossa TL ser bombardeada com inúmeras matérias, reportagens, entrevistas, etc, com a senhora Raquel Sheherazade, apesar de não acompanhar o trabalho da moça desde seu abençoado (inclusive por mim) vídeo sobre o carnaval, em sua antiga emissora, e mesmo tendo vibrado de inocente alegria ao saber que ela seria ancora de um jornal no meu estado, desta vez com repercussão nacional, colocando sobre ela o peso platônico de jamais me decepcionar, fui como a maioria (ou minoria?) decepcionado gradativamente.
Admiro o poder que ela possui de escancarar de boca cheia, verdades tão obscuras em nosso cotidiano. Afinal, foi exatamente isso que ela fez em seu vídeo sobre o carnaval, como muitos disseram à época: "esta moça disse absolutamente tudo o que eu sempre quis dizer!", e o fez com grande proficiência. Mudou algo desde então? Mudou, além do Carnaval odiado por Raquel e uma pequena (SIMMM! PE-QUE-NA!) parcela dos brasileiros, teremos uma copa e uma olimpíada onde o dinheiro publico irá correr entre ralos e bolsos, mudando pouco ou quase nada de nossa nada mole vida cotidiana.
A verdade é que essas grandes verdades que 'todo mundo' pensa, não se aplicam a nossa realidade, e por isso não possuem o poder de mudá-la. INFELIZMENTE.  Afinal, já diria o poeta, que coisa mais bela uma 'verdade' pode fazer além de existir?
Sua ultima grande ‘verdade’ foi que cidadãos 'de bem' tem o direito de se defender da criminalidade, e até mesmo lutar contra ela com os próprios punhos, usando de exemplo o caso do jovem acorrentado ao poste no Rio de Janeiro. 
PORRA! Nessa verdade eu queria MUITO acreditar! Muito mesmo, ela praticamente descreveu o Batman, ou a filosofia do filme Kick Ass, seria incrível realmente se existisse algum tipo de homem aranha, ou seja la o que for, mesmo um grupo seleto de pessoas sedentas por justiça, um X-MEN, ou um V de Vingança além das máscaras bocós. 
Já pensou que utopia linda de viver? Um reino da Marvel ou DC chamado Brasil onde eu estivesse de mãos dadas com o meu namorado na rua, e um grupo de NN aparecesse para nos trucidar, e bem quando vamos ser capturados para logo em seguida sermos suicidados, um carro com desconhecidos os impedisse com uma boa dose de surra e de humilhação prendendo todos eles a postes pela cidade!
Eu iria gostar disso? SIM, eu iria adorar, por menos humano que isso pareça, essa ideia de vingança que existe por trás dos justiceiros é muito gostosa, mas como disse, uma verdade tão linda jamais se aplicaria a nossa realidade.
Caso a história fictícia de eu e meu namorado estarmos sendo agredidos por um determinado grupo, e então outro grupo aparecesse, no final de tudo quem estaria num poste? OBVIAMENTE, eu e meu namorado, talvez até suicidados. 
Alguns dirão que isso é vitimismo de minoria oportunista, etc (Meu cú!)
Hoje mesmo, tomei minha boa dose diária de realidade com o simples fato de atravessar uma rua. Lá estava eu voltando do trabalho a pé, costume adotado depois de um súbito animo com exercícios, quando atravessava um sinal vermelho na faixa de pedestres, e para a minha sorte o sinal voltou a ficar verde bem quando estava praticamente no meio do caminho.
Então percebi que se aproximava um desses carros rebaixados, com um funk tocando no ultimo, dentro o motorista de boné e óculos espelhados, era a pura encarnação de todo esse movimento rolezinho que surgiu 'do nada' na mídia nacional.
Imediatamente recuei de volta para a calçada, com o medo e a resignação de quem espera algum ataque, algum tipo de mal, que espera o motorista acelerar bem em cima de você, ou que ao me ver voltar para a calçada, ele passasse por mim e gritasse (como já aconteceu comigo e com tantos outros gays inúmeras vezes) "Bicha!", "Aiiii", "Lindaaa!", ou qualquer outro tipo de 'ofensa' que na teoria o deixaria mais homem e a mim menos homem, mas que na pratica só me faz lamentar o fato de ainda não poder explodir cérebros mentalmente.
Admiro as reações que vejo em outros gays expostos a esse tipo de coisa, eu mesmo já tentei várias delas, jogar algo no carro, gritar "sua mãe não reclamou", ou um simples "chupa meu cu!", mas com o lapidar dos anos e da maturidade vamos recuando e passamos a ignorar instintivamente todos esses tipos de atritos urbanos diários (fones de ouvido ajudam muito).
E lá estava eu na calçada esperando o tal carro 'algoz-de-tudo-o-que-eu-temo-e-por-isso-evito-ou-finjo-que-não-existe'passar por mim, quando percebo que ele parou, bem antes da faixa, e com o braço e a cabeça acenou educadamente para que eu terminasse a travessia, meu corpo respondeu instintivamente aquela gentileza obedecendo-a. No meio da faixa fiz um sinal de ‘jóia’ pra ele, o famoso 'obrigado' dos pedestres, ele me respondeu com uma pequena buzinada e seguiu seu caminho.
Passei o resto do caminho de volta pra casa agradecido por aquele motorista ter demonstrado comigo (pedestre) uma cordialidade TÃO rara no transito, e ao mesmo tempo me culpando por não ter esperado isso dele. Meus caros, isso tem um nome: PRECONCEITO, e preconceito é bem mais do que medo. Como todos nós aprendemos em "O Mágico de OZ", o medo é irmão da sabedoria, se eu tivesse voltado correndo pra calçada por 'medo' de ser atropelado e colocar minha vida em risco, isso seria sábio de minha parte, mas voltar para a calçada por esperar algum tipo de hostilidade do motorista apenas por ser 'o tipo de homem que seria hostil com um homossexual na rua se aproveitando da segurança e velocidade de seu carro', não é nada sábio, é imbecil.
Por que eu espero ser tratado assim por outro ser humano, por que eu aceito que ele possa se permitir me tratar assim, e por que eu me retiro de seu caminho ANTES de tudo acontecer? Perguntas profundamente pessoais e com um 'Q' psicológico para serem abordadas neste texto mais objetivo.
Vivemos na sociedade da navalha de Occam*, onde a solução mais simples é a verdadeira. Se ouvimos um relincho atrás de nós, obviamente será um cavalo, nunca uma zebra, muito menos um unicórnio.
Voltando ao mundo utópico de super heróis urbanos descrito por Raquel, se ele de fato existisse HOJE, em nossa realidade, a famosa pergunta "É um pássaro? Não, é um avião! Não! É o superman!"... Teria terminado lamentavelmente no "É um pássaro (PONTO FINAL)".
Uma das esfinges que precisamos encarar com mais regularidade, para fugir dessas 'grandes verdades' sem ‘aplicação prática na realidade’ que não mudam ABSOLUTAMENTE nada, e nos são vendidas como 'vingança social heroica', é nos despirmos de algumas mentiras, principalmente as muito mais inacreditáveis do que nossas verdades/realidades inadmissíveis.


*A navalha de Occam é uma linha de pensamento que diz que a resposta mais simples costuma ser a certa.